Em 1541, uma onda gigante atingiu São Vicente, a primeira vila do Brasil. Prédios foram destruídos e o núcleo urbano teve de trocar de lugarTexto Marsílea Gombata
O historiador Mario Neme, usando as referências de frei Gaspar, escreveu em Notas de Revisão da História de São Paulo que "em fins de 1541, verifica-se a destruição pelas águas do mar de diversas construções da vila, entre as quais a conhecida ‘casa de pedra’ ou fortaleza, da qual não se volta mais a falar e não é encontrada dez anos depois por Tomé de Sousa, quando visita a capitania de São Vicente". De acordo com Neme, com base em esclarecimentos deixados pelo espanhol Alonso de Santa Cruz, "a ilha de Urubuqueçaba [perto da praia de José Menino, em Santos] devia fazer parte das terras marginais, que, cobertas pelo mar em fins de 1541, teriam deixado à mostra apenas a porção mais elevada da rocha". O fenômeno, como se vê, não apenas destruiu boa parte das construções. Também alterou a geografia da região, com efeitos que seriam sentidos pelos habitantes do lugar.
Relatos dão conta que uma onda gigante teria deixado submersos dois importantes ícones da vila: a Igreja Matriz, o maior prédio de São Vicente, e o pelourinho, símbolo da autonomia municipal e onde novas leis eram lidas para
a população. Índios, mamelucos e os poucos europeus do lugar viviam de uma economia de subsistência, que ganhava fôlego quando os não muitos navios que passavam por ali a caminho do Rio da Prata eram reabastecidos. Naquela época, explica o arquiteto Rubens Gianesella, as construções na colônia eram precárias, de pau a pique ou de taipa de pilão (com argamassa de terra preparada em forma de madeira e socada com pilão) e cobertas com sapé. Por isso, eram muito frágeis. "Qualquer ressaca mais forte, dessas que vemos invadir calçadas e ruas, poderia ter destruído as edificações da vila", afirma.
Somente em 1543 os membros da Câmara solicitaram ao governo local o resgate de dois ícones da vila que estavam submersos: os sinos de bronze da Igreja Matriz e o pelourinho. Para as operações, o procurador da Câmara, Pedro Colaço, recebeu 50 réis por providência. Foram dados ainda 300 réis para Jorge Mendes, responsável por retirar o pelourinho da água, mais 20 réis para transportá-lo até outro local e outros 250 réis para Jerônimo Fernandes, que ficou com a tarefa de reerguê-lo. "Assim, o conselho gastou 620 réis para fazer o primeiro trabalho subaquático que se tem notícia do Brasil, quem sabe das Américas", observa Wilma Therezinha. O pelourinho se encontra hoje no Museu Paulista da USP, conhecido como Museu do Ipiranga.
Em 1555, ordenou-se a construção de uma nova Igreja Matriz, cerca de 300m acima do nível do mar e com os fundos voltados para o Atlântico. Ela está no mesmo lugar ainda hoje, depois de uma restauração no século 18. A onda gigante mexeu com o futuro da vila, fundada por Martim Afonso de Sousa em 1532 - ele se tornaria o donatário da Capitania de São Vicente. O porto, que funcionava como fonte da economia do lugar, mudou-se para onde está até hoje, no norte da ilha, que também é chamada de São Vicente. A mudança ocorreu a mando de Brás Cubas, fundador de Santos, e fez com que o novo porto se tornasse muito mais atraente para as embarcações - mas a contrapartida foi o crescimento de Santos em detrimento da vila original (hoje, as duas cidades dividem a ilha). "O porto das naus original foi bastante prejudicado no episódio e passa a não ter mais a função que tinha antes, por causa do assoreamento da baía", acrescenta o historiador Marcos Braga, coordenador da Casa Martim Afonso, em São Vicente. Além do porto, a vila como um todo também mudou. Foi reconstruída um pouco mais acima do nível do mar, ao redor da nova Igreja Matriz, na Praça João Pessoa. Quem caminha pelo centro histórico percebe que o local está em uma parte mais elevada em relação ao nível do mar do que a Biquinha de Anchieta, região de topografia mais baixa, onde a vila se concentrava antes de 1541.
Mas, afinal, o que devastou São Vicente? As opiniões se dividem entre uma grande ressaca e um improvável maremoto (veja o quadro acima). O oceanógrafo Michel Michaelovitch de Mahiques, da USP, trabalha com a hipótese de que uma só onda tenha sido responsável pela destruição. Ele explica que, apesar de o litoral sul do Brasil ser afetado por ressacas, elas são formadas por séries de ondas, ao contrário dos tsunamis - uma única e devastadora onda. "Os registros históricos são pobres, mas dão conta de que uma única grande onda arrasou a vila", diz Mahiques. Outra possibilidade, diz o oceanógrafo, é a de que um enorme escorregamento no talude (a escarpa submarina que vai da plataforma continental à zona abissal, 250 km mar adentro) possa ter gerado o fenômeno.
Uma ressaca das bravas
A ressaca é gerada por fatores externos sobre o mar. O maremoto tem causas endógenas, como terremotos. O efeito de cada um depende da magnitude. Apesar de, por vezes, grandes marés meteorológicas poderem ter impactos similares a maremotos, as consequências costumam ter maior distribuição espacial. "Suas ondas são provocadas pelo deslocamento do assoalho oceânico e propagadas em todas as direções, podendo atingir regiões bastante distantes", diz Eduardo Siegle, da pós-graduação em Oceanografia da USP. Um maremoto, como o que ocorreu em 2011 em Fukushima, no Japão, propaga-se a centenas de quilômetros por hora. Quando atinge a costa, pode levar a uma sobrelevação do nível do mar de até 20 m. Sem falhas geológicas no Atlântico Sul, as chances de um evento assim na costa brasileira são mínimas. "Com base em evidências históricas, é pouco provável ter havido um maremoto", diz Marcelo Assumpção, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP. "Se ocorreu ou não em 1541, a chance de acontecer de novo é mínima, de uma vez a cada 10 mil anos."